Tenho comigo entradas para o recital de Fernando Cabrera que aconteceria as 21h no Sesc Belenzinho.
Estou no outro extremo da cidade, tenho 30km para percorrer em um período de 3 horas, e em São Paulo, numa sexta-feira às 18h significa provavelmente ter dificuldades para chegar ao recital.
O trânsito estava lento, algumas interdições pelo caminho fizeram que o percurso se tornasse ainda mais longo.
Entre buzinas e barulhos intermináveis de uma cidade que não para nunca.
Meus pensamentos estavam repletos de reflexões : " Fernando Cabrera, será que ele é mesmo " o Caetano Veloso do Uruguai" como dizem os críticos brasileiros?", " Será que conseguirei compreender suas canções com este meu espanhol tão primário?", " Outros brasileiros além de mim estarão lá? Uruguaios também?", "
Enquanto criava em meus pensamentos expectativas sobre o que iria viver. Finalmente às 20:30h cheguei ao meu destino.
Ainda me restava meia hora antes do show, fui a cafeteria, estava ansiosa, e um tanto cansada do meu dia de trabalho. Precisava comer e beber alguma coisa.
O show estava marcado para acontecer no Teatro do Sesc, assim que quando cheguei não haviam muitas pessoas naquele andar.
Tomava meu café e observava as pessoas que entravam. Não havia outro evento naquele piso, assim que conclui que todos aguardavam por Cabrera.
A primeira impressão que tive é que se tratava de um público distinto. Havia senhoras e senhores sexagenários alguns portando bengalas, não é um costume encontrar pessoas desta idade indo a recitais no Brasil, e isso já me surpreendeu.
Depois a grande maioria do público era formada por pessoas como eu, com idade próxima aos 30 anos, um pouco mais talvez, mas seguramente entre 30 e 40 anos.
Homens de 30 anos com barba não é algo tipicamente brasileiro, e o lugar estava repleto deles, mulheres com roupas alternativa também não. Me sentia fora de contexto, eu era completamente diferente de todos naquele ambiente.
Nas mesas ao meu redor, o idioma predominante não era o português e sim o espanhol, meus ouvidos estavam loucos tentando compreender sobre o que conversavam.
Naquele momento não estávamos em São Paulo, estávamos em um lugar qualquer de Montevidéu.
Tudo isto para mim compunha parte do show, eram elementos muito particulares e eu estava completamente encantada.
Às 20:50h, funcionários do local abriram as portas do Teatro para que o público pudesse se acomodar.
Me sentei a pouquíssimos metros do cenário, a minha frente, estava um daqueles senhores sexagenários acompanhado de um daqueles "homens de 30" provavelmente se tratavam de Avô e Neto, de uma estória que começou em terras uruguaias e prosseguiu em solo brasileiro.
O senhor perguntava em Espanhol ( a maioria das coisas que ele dizia eram realmente perguntas), o homem lhe respondia em português, e era como se os dois falassem a mesma linguagem, se entendiam perfeitamente.
Pontualmente às 21h as luzes do teatro se apagaram e o locutor com sua voz grave e bonita transmitia-nos suas orientações sobre ser proibido filmar e fotografar, sobre a localização das saídas de emergência e todo aquele protocolo que se deve cumprir antes de começar qualquer espetáculo.
Neste momento, dois fatores mais uma vez me traçaram paralelos entre Brasil e Uruguai.
Primeiro: Os recitais no Brasil nunca começam no horário programado. Sempre há atrasos, um artifício que os artistas utilizam para aumentar a expectativa do público ou mesmo para demonstrarem o quão grandiosos e importantes são.
Segundo: Não dei a menor importância para as orientações sobre "proibido filmar e fotografar", ninguém nunca fiscaliza isto, nunca me impediram de gravar, esta é seguramente uma informação totalmente protocolar que a casa de eventos deve cumprir. Assim que, estava com minha câmera preparada para registrar todo o espetáculo como é de meu costume proceder.
Ao término das instruções finalmente foi anunciado Fernando Cabrera, o público presente aplaudiu fervorosamente, como se há muito tempo esperassem por aquele momento. Seguramente esperavam.
Cabrera, com seu traje elegante, saudou ao público com uma reverência. Sentou-se ao fim das palmas. Um silêncio profundo tomou conta do teatro. Ouvia-se claramente todos os sons de Cabrera conectando seus instrumentos musicais. Cada segundo parecia durar uma eternidade.
Havia um pouco de tensão no ar, gerada pela expectativa de todos que aguardavam ouvir os primeiros acordes e a singular voz do cantor.
O silêncio foi quebrado, e o teatro se encheu da doçura dos acordes e da ternura da voz de Fernando.
Isso para mim era quase que inacreditável, temos aqui o maldito costume de tentar cantar mais alto que o artista para externalizar nossas emoções.
Tenho certeza de que a grande maioria das pessoas presentes sabia cada um dos versos de todas as canções que nos foram apresentadas, mas o importante ali não era externalizar nossas emoções e sim captar em nossos silêncios toda a poesia presente naquele homem, algo grandioso estava acontecendo naquele momento e nós, cerca de 200 pessoas presentes, eramos as únicas testemunhas disto. Isso era mais do que um privilégio.
As cinco primeiras canções do set list foram: Punto Muerto, La Casa de al lado, Caminos en Flor, La garra del corazón e Al mismo tiempo.
As 3 primeiras canções soaram ininterruptas, sem nenhuma intervenção do público, todos estávamos estáticos, era maravilhoso o que chegava aos nossos ouvidos.
Ao término da 3 canção, de uma maneira muito divertida com um pausado " M-u-y b-u-e-n-a-s n-o-c-h-e-s" Cabrera arrancou risos da platéia.
Eu já estava completamente convencida de que aquele homem era realmente um grande artista, de uma linhagem muito singular, de uma compreensão as vezes não tão acessível ao grande público mas de pura maestria.
Eu conhecia poucos temas, mas isto não me impediu de perceber quando se tratava de uma canção espetacular.
Todos os meus sentidos estavam voltados para absorver o máximo de sensações possíveis, não queria perder nenhum detalhe. "Quando será a próxima vez que poderei desfrutar de tudo de novo? Não sei!" Algumas oportunidades são únicas e eu agarrei esta com todo o meu coração.
Quando começaram os primeiros acordes de "Escondido" fui gentilmente convidada a interromper minha filmagem. Isto nunca me havia acontecido, assim que fiquei um pouco inerte e obedeci ao comando.
O que se seguiu depois foi mais lindo ainda, os próximos temas foram cantados e tocados por Cabrera como se tudo estivesse completamente cheio da sua verdade, e eu acredito que realmente estava, me dei por convencida disto quando desabotoando a sua camisa, com a voz um tanto embargada, os olhos trêmulos e cheios de tristeza ele disse " a próxima canção sempre me emociona muito e me deixa nervoso, se chama " Lisa se casó"
Que intensidade em cada verso! Quase pude tocar a dor que ele sentia quando dizia cada palavra desta canção.
Me aproximei do altar
Era a minha vez de ler
Não repare nunca Deus
A ingênua comédia que os homens interpretem
Os outros dois pontos que me marcaram muito durante o recital foram quando Cabrera cantou "Te abrace en la noche"
Te abracei a noite
Com aquele beijo desconhecido que se foi contigo
Quase não pude conter as lagrimas em meus olhos, nem tão pouco tinha a intensão de fazê-lo. Foi como um golpe forte, meu coração se apertou em um instante profundo era como se aqueles versos contasse um pouco de mim, um pouco de minha estória.
A outra grande canção, que chegou em mim como um raio foi " Nunca te dije te amo"
Nunca te disse te amo
Nem vou te dizer
São palavras que qualquer um
Diz com certeza ou não
Nunca te disse te amo
Mas te amo como nunca amarei
Outros tantos foram os momentos especiais, como quando cantou " Viveza" acompanhado de sua sua pequena caixa, um ritmo tão próximo do samba brasileiro. A medida que a batida na caixa se alterava em minha mente se aclarava o contexto imagético de todos os elementos da canção, me senti como quando estive a pouco mais de um ano na centro da Cidade Velha vendo passar por mim todos os personagens da canção: A secretária, o gato, a fina chuva, o cheiro das frutas no Mercado Municipal, o rato com suas ganas de sobreviver.
Poucas canções me propiciam esta sensação de me transportar para o lugar narrado. Recordar este momento me emociona.
Ao término de 60 minutos de show Cabrera agradeceu a presença de todos e se retirou do cenário.
Nós, público presente, o aplaudimos por cerca de 5 minutos em pé até que ele regressasse ao cenário.
Contente com o que se passava, com um largo sorriso estampado em seu rosto nos dizia algumas palavras enquanto muitos da platéia aproveitavam daquele momento para implorar que tocasse sua canção favorita, muitos foram os temas solicitados mas Fernando escolheu " La Balada de Astor Piazolla" para nos presentear uma vez mais.
Explicou que era a escolhida por em determinado momento " nombrar a Tom Jobim, uno de mis referentes en la música, soy "fã", fanático de el" e seguiu explicando que fez esta canção quando soube que Astor Piazolla havia sofrido um acidente vascular cerebral, que se encontrava em coma e que queria que com aquela canção suas palavras lhe chegassem de alguma maneira. Disparou seus versos e acordes uma vez mais.
Seu coração me faz recordar as mudanças
Da hormonia de Tom Jobim
Ainda tivemos o privilégio de ouvir umas 4 ou 5 canções mais. Ovacionado novamente agradeceu a presença de todos e se despediu com uma frase emblemática que nunca em minha vida eu havia escutado e que confirmou todas as minhas impressões sobre aquele homem:
HASTA SIEMPRE
Me retirei do teatro com a alma repleta de sensibilidade, a música sempre é um mecanismo muito intenso em minha vida é algo que me permite sempre tocar o que há de mais sincero em minha existência.
No saguão do Teatro me dirigi a bancada onde estavam expostos para venda o cd "Viva La Patria", o DVD "Intro" e o livro "Mudança" editado somente no Brasil, de maneira bilingue no mesmo exemplar, com poemas e canções de Cabrera. Comprei todos!
Perguntei se ele iria autografá-los e ouvi um sonoro " Sim, é só aguardar".
Aguardei e enquanto aguardava uma doce voz feminina surpreendida me perguntou como eu conhecia Cabrera. Lhe respondi que tenho amigos no Uruguai e que me apresentaram a música de Cabrera. Ela realmente estava surpreendida e eu um tanto em dúvida se ela era brasileira ou não, tinha um português excelente e estava acompanhada de um homem que sem sombra de dúvidas era uruguaio.
Me sentia nervosa, na expectativa de ter um instante com Fernando, encerrei brevemente a conversa com aquela mulher e me arrependi amargamente de não ter prosseguido, me parecia uma pessoa interessante, daquelas que sabem traduzir em excelentes palavras todas as suas opiniões.
Pouco depois surgiu Cabrera, de braços abertos e sorriso sincero.
Havia uma mulher antes de mim, prestei atenção no que eles conversavam. Ela estava visivelmente nervosa e lhe contava que o havia conhecido por kevin, suponho que se tratava de Kevin Johansen.
Ela se despediu, era a minha vez, foi ele quem disse primeiro:
_ Hola que tal?
_ Hola, muy bien y vos?
_De donde sos?
_De acá!
_Ah! De San Pablo, que bien!
_ Compraste todos?
_ Por supuesto! Ya los quiero muchísimo
_ Como es tu nombre
_ Júnnia. J-U-N-N-I-A
_ Es un invento de tus padres?
Neste momento nos olhamos e começamos a rir com muita alegria, lhe respondi que era algo assim. Uma broma uruguaia, Fernando me fez uma broma!!!! Nunca me esquecerei disto!
_Gracias por regalarnos tanta dulzura e tanta ternura en tus canciones!
_ Gracias a vos por venir!
_Me regalas una foto?
_Claro!
y ya no hace falta decirles nada!
Junnia Helisa
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